quarta-feira, 8 de julho de 2009

A primeira e última vez

Existe um fator decisivo para que eu continue morando em Novo Hamburgo: um projeto maior que começou a tomar forma este mês e deverá se concretizar até o final de 2010. Um projeto de vida, eu diria, que me mantém na decadente Capital Nacional do Calçado.

No meio disto tudo, deparo-me com a figura Eduardo Galeano – jornalista e escritor uruguaio que, por aquelas injustiças que só o destino explica, nunca teve seu trabalho devidamente reconhecido. (Re)ler a obra de um de meus literários favoritos não costuma me trazer grandes recordações. Mas minha história relativa ao Galeano está relacionada àqueles acontecimentos que, de tão surreais, parecem cotidianos.

Era novembro de 2008. Havia anos que não segurava na mão uma obra do uruguaio. E não tinha a mínima pretensão de que acontecesse naquele dia. Puxando um pouco mais pela memória, era terça-feira, 11 de novembro, e, depois de 25 anos de espera, finalmente pude presenciar uma apresentação ao vivo do R.E.M.

Aquela tarde/noite foi marcada por várias situações inusitadas: a espera de horas para ficar em um bom lugar; o fim da cerveja no meio do show; a loira desconhecida que dançava como se não houvesse amanhã, enquanto sussurrava em meu ouvido. Foram algumas das situações para as quais estava desacostumado. Mas a noite estava apenas começando.

Na saída do estádio do Zequinha inúmeros ambulantes vendiam cervejas, refrigerantes, águas minerais. Sedento, parei em uma e comprei uma daquelas latas de 500ml. Continuei o caminho, a procura de um táxi que me levasse até o Centro de Porto Alegre para a parte derradeira da aventura: a volta em ônibus pinga-pinga até minha tao mal falada e violenta terrinha. No meu trajeto, entretanto, tudo mudou.

Aos gritos 'skol um litro a cinco reais', um grupo chamou minha atenção. Eram dois casais que exibiam o mais perfeito estereótipo do estudante de História/Filosofia/Sociologia da UFRGS. Decidi arriscar, afinal, o assunto me interessava: cerveja. Parei ao lado deles e puxei papo quanto a venda da cerveja. Descobri que eles vendiam trufas, também. E que moram em Canoas.

Os casais não eram exatamente casais. Um de verdade: Rodrigo – ou Capitão, como também era chamado – exibia sua barba de, pelo menos dois meses, como um troféu. Junto dele, sua namorada, uma morena cujo nome não lembro. Cara de criança, sorriso inocente, mas com olhos que despontavam malícia e experiência. O outro par era formado por uma loira hippie que falava pelos cotovelos as coisas mais absurdas e geniais do mundo – e estava com a perna quebrada; e um rapaz que destoava do grupo e pouco se manifestou.

Enquanto terminava minha lata para começar a próxima rodada, conversávamos amenidades: sobre o show, sobre o fato de eles realmente serem estudantes da UFRGS – de História, no caso. Papo vai, papo vem, a cerveja acaba. Tento comprar uma deles, mas se negam a vender. Serei obrigado a tomar com eles, de graça. Certamente não fiquei decepcionado.

Falávamos sobre o show deu inveja de saber que ali, fora do estádio, economizando 80 reais, era possível assistir de um telão, bebendo muita cerveja. Inveja momentânea, claro. Foram os 80 reais mais bem investidos da minha vida.

Certa altura, a morena – figura pequena e graciosa, com lábios bem feitos e pernas invejáveis, cujo nome não me recordo mais – saca um livro da sua bolsa hippie. De canto de olho leio o título: Mulheres. Segue-se o diálogo:
- É Bukowski?
- Não, ainda é cedo para Bukowski. É Galeano.
- Que massa, não conhecia esse livro.
- É uma coletânea de textos em homenagem às mulheres.

Nesta hora, Rodrigo se aproxima:
- Podemos ler uma coisa para ti?
- Claro, seria ótimo.

A menina começa, voz doce, suave e sexual:

Maria Padilha
Ela é Exu e também uma de suas mulheres, espelho e amante: Maria Padilha, a mais puta das diabas com quem Exu gosta de revirar nas fogueiras.

Não é difícil reconhecê-la quando entra em algum corpo. Maria Padilha geme, uiva, insulta e ri com muito maus modos, e no fim do transe exige bebidas caras e cigarros importados. É preciso dar a ela tratamento de grande senhora e rogar-lhe muito para que se digne exercer sua reconhecida influência junto aos deuses e diabos que mandam mais.

Maria Padilha não entra em qualquer corpo. Ela escolhe, para manifestar-se neste mundo, as mulheres que nos subúrbios do Rio ganham a vida entregando-se a troco de tostões. Assim, as desprezadas se tornam dignas de devoção: a carne de aluguel sobe ao centro do altar. Brilha mais que todos os sóis o lixo da noite.



Fiquei sem palavras para descrever os sentimentos que me passavam pela cabeça e acabamos mudando de assunto e voltando à cerveja de litro até a hora de ir embora.

Trocamos telefones e nos despedimos como bons bebuns: marcando encontros para datas próximas.

Mas eu sabia que aquela era a primeira e a última vez que os viria. Porque às vezes, só às vezes, esta é a melhor forma de conhecer pessoas.

Um comentário:

carolinda disse...

nooooooooooossa, foi uma pena ter lido isso e não ter ouuvido de ti esta história, chorei de rir com a tua rotulação de pessoas, assim como "seu barriga versão índio", adorei a tua percepção fagner, me lembrei porque eu ti amo tanto.
hahaah, adorei muito este, tua vida é realmente uma surpresa atrás da outra.

bjos
"a mais puta das diabas com quem Exu gosta de revirar nas fogueiras." uahauhauha