domingo, 4 de outubro de 2009

La Negra

Sempre considerei minha avó como uma pessoa desligada da política. Claro, no sentido partidário. Mas ela sempre tentou fazer com que eu assimilasse alguns valores que, segundo ela, seriam indispenáveis para que uma criança se torne uma 'boa pessoa' (seja lá o que a expressão 'boa pessoa' queira dizer). Puritana e católica, volta e meia me passava algum sermão: quando encontrava minhas revistas e meus filmes pornográficas ou algum livro que ela achava que "não é para a tua idade". E, fazendo isso, jogava o material IMPRÓPRIO no lixo.

É claro que essa reação não era pessoal e não era apenas eu quem perdia os bens para a lixeira. Meu tio, filho mais novo dela, também passava por esse tipo de situação. E, como ele tinha coisas que eu não podia ter - por diversas razões, incluindo o fato de eu não ter dinheiro pra comprar - me acostumei a esconder-me perto da lixeira para resgatar os bens dele.

Normalmente eram coisas tão ou mais sem graça que as minhas: revistas e filmes de putaria, cigarros, camisinhas - que serviam para eu conseguir alguma vantagem com meu tio para devolvê-las.

Um dia, no entanto, eu vi uma coisa diferente. Quer dizer, já tinha visto centenas de objetos como aquele. Um compacto de vinil. E minha cabecinha pré-adolescente ficou encanadíssima com aquilo. O que diabos um vinil estaria fazendo no lixo? Aquilo PRECISAVA ser averiguado.

Naquela época eu não entendia nada sobre música de protesto, muito menos tinha noção de que as artes da política podem ser coisas tão relacionadas e íntimas (se eu tivesse 13 anos hoje, acho que minha verdade pré-adolescente não estaria muito longe da verdade). Foi assim que eu surrupiei aquele disquinho, tentando imaginar como faria para ouví-lo sem que ninguém percebesse.

Felizmente, eu tinha um walkman, um 3 em um e uma (rara) boa idéia. Tirei o volume do som, coloquei o disco para tocar, gravei em uma fita cassete e devolvi o disco ao lixo (infelizmente, às vezes temos que fazer alguns sacrifícios). Não podia deixar pistas, afinal, um disco era apenas um DISCO: tocava histórias infantis, músicas para crianças, hits pops e hinos de natal (tudo muito bonito, tudo muito cristão). Se aquele antro, que era destino de todas as coisas não-cristãs do mundo, havia recebido aquele objeto, era porque havia alguma coisa 'dentro' de um vinil que eu ainda não conhecia.

Inventei uma desculpa qualquer e saí de casa para um passeio. Fui a um parque perto de casa e coloquei a fita para rodar. Lembro como se fosse hoje a sensação que tive quando ouvi a voz dela pela primeira vez. Era católico praticante na época. E lembrei de quando o pessoal do grupo em que frequentava falava sobre como os grandes profetas haviam iniciado sua jornada de pregação por meio da revelação (que na doutrina católica tem um nome específico, mas que não lembro agora o nome). Naquela hora tive a MINHA revelação. Ela era tão confusa como seria uma enviada por um arcanjo de deus, mas eu percebi uma coisa que até hoje não sei exatamento como o fiz: uma mulher com aquela voz devia incomar MUITA GENTE.

Um engraçadinho qualquer pode interpretar de forma errada, então vou tentar explicar melhor: quando eu ouvi aquela fita e senti aquela voz ao mesmo tempo forte e serena, desafiadora e acolhedora, eu tive certeza que ali havia um discurso em defesa de alguém ou de alguma coisa que estava sendo subjugada. E, principalmente, sabia que o que era cantado não seria do agrado de um grupo que mandava em alguém ou em alguma coisa.

Na época eu tinha apenas 13 anos e não entendi quase nada do que aquilo quis dizer. Mas a situação foi o embrião para o surgimento de uma rebeldia sem a qual acho que teria me tornado uma pessoa bitolada e sem nenhum senso crítico (dominado por uma filosofia judaico-cristã podadora). E a culpada disso tudo é essa senhora:

Mercedes Sosa, La Negra Sosa, era a cantora em questão. Forte defensora dos direitos humanos na época das ditaduras na América Latina, defensora dos que não tinham voz, mulher firme que mesmo diante de todas as adversidades, não fugia de sua luta. Foi ela, ha mais de 10 anos, quem me abriu os olhos para um mundo novo, onde a busca por justiça social e igualdade de direitos deveria ser prioridade. Onde quem tem voz deve falar pelos que não tem.

A ida dela deixa um vazio muito grande - podemos contar nos dedos os grandes nomes das artes no dias de hoje - mas nos remete a um momento de reflexão sobre a nossa função no mundo. Para mim, pelo menos, é momento de rever atitudes, objetivos. Talvez, esteja me perdendo do caminho que decidi trilhar ao escolher o jornalismo, por exemplo.

É hora de repensar minha vida e tomar um rumo!

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