sábado, 17 de outubro de 2009

A fábula dos cotovelos

Uma das bibliografias do meu trabalho de conclusão de curso é o livro Jornalismo Literário, do jornalista (dã) Felipe Pena. Pena abre o primeiro capítulo com um texto que ele chama de fábula dos cotovelos, uma história que, embora envolva o céu, o inferno, o diabo e São Pedro, nos traz uma moral muito humana esquecida: a convivência é uma via de mão dupla. Esse textinho resume muito meus princípios e ideais (sim, sou um bobo inocente que acredita que não temos nada a ganhar quando estamos sozinhos e, também, alguém que fica muito puto quando vê alguma injustiça - ou quando se sente injustiçado). Acho que vale a pena a leitura:

Um sujeito magro, quase careca, daqueles de poucos fios ao lado da cabeça, com uma barriga saliente e o pensamento no umbigo do mundo, tira a carteira do bolso e se identifica para o despachante.

- Sou jornalista - diz

- Jornalista, é?

- É jornalista!

- E porque o jornalista precisa de um despachante?

- Quero fazer uma reportagem comparativa e preciso entrar em dois lugares muito diferentes. Você pode me ajudar?

O despachante analisa a face amarela do homem à sua frente. Fixa os olhos na testa longa, umedecida, revelando a oleosidade da pele fina. Tenta adivinhar seus pensamentos, mas esbarra na concentração tibetana do jornalista, que devolve o olhar fixo com uma intensidade ainda maior, quase fulminante, reservada apenas aqueles que acreditam ter uma missão a cumprir.

- E a que lugares o amigo deseja ir?

- Ao céu e ao inferno - respondeu o repórter.

- Hum! Não é tão difícil. As estradas parecem opostas, mas são paralelas.

Da gaveta da escrivaninha, o despachante puxa uma lista de formulários já carimbados e entrega-os ao repórter. Após o preenchimento, assina dois passes quase idênticos, grampeia os canhotos das fichas e coloca-os em plásticos transparentes.

- Aqui estão os passes. São válidos para uma única entrada em cada local. Você sabe a quem procurar?

- Sei - respondeu o jornalista.

- Então, boa sorte.

Com os documentos no bolso, o jornalista encaminha-se para o inferno. É recebido pelo Demônio em pessoa no portal de fogo que dá acesso ao local. Passa por um corredor estreito, vira à direita em uma pequena ante-sala e logo se depara com o salão principal, de tamanho infinito, onde estão milhões de pessoas.

Ao analisar os habitantes daquele antro, repara na felicidade geral. Todos estão cantando, dançando e rindo à toa. Parecem gozar de boa saúde, não tem aborrecimentos, passam o dia em festas, não há ofensas, doenças, humilhações, inveja ou qualquer outro tipo de mazela. A paisagem é paradisíaca. Árvores frutíferas, cachoeiras, rios de água transparente, longos vales e montanhas. Um lugar fantástico, pensa, não fosse por um único detalhe: depois de um certo tempo, todos acabam morrendo de fome, já que os moradores do inferno têm os cotovelos invertidos e não podem levar comida até a boca.

Sem conseguir tirar aquela imagem da cabeça, retira-se pela mesma porta por onde entrara.

Intrigado e perplexo, segue viagem rumo ao céu, a segunda metade do itinerário de sua reportagem, imaginando a frustração que deve ser morrer de fome em um lugar tão bonito como o inferno. Tudo culpa dos cotovelos invertidos. Quando chega ao destino, passa pelo mesmo ritual. Entrega os documentos a São Pedro, que o conduz a um grande portão de nuvens. Passa por um corredor estreito, vira à direita numa ante-sala e, novamente, depara-se com um salão infinito. Lá dentro, a surpresa: estava diante das mesmas pessoas, das mesmas paisagens, da mesma felicidade.

No céu, assim como no inferno, todos riam, tinham saúde e também passavam o dia em Festas. Da mesma forma, ali estavam as árvores frutíferas, os rios, os vales e as montanhas, como se fossem cópias do que vira na primeira parte de sua viagem. Passou, então, a observar os habitantes do céu e logo percebeu que eles também tinham os cotovelos invertidos. Pensou:

- Aqui, eles também devem morrer de fome depois de um tempo.

Estava errado. No céu, ninguém morre de fome, porque cada um leva a comida à boca do próximo na hora das refeições. E essa é a única coisa que o diferencia do inferno.

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